Virgília Pelos Olhos de Brás Cubas: O Que o Defunto Autor Tinha a Dizer
Análise do Livro Memórias Póstumas de Brás Cubas que fiz para cadeira de Literatura da faculdade.
Parte I: O Começo de Tudo: Virgília como um Sonho de Futuro
Quando Virgília aparece pela primeira vez em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ela não é apresentada como uma pessoa de carne e osso, mas sim como uma ideia, um projeto de futuro. As primeiras passagens que falam dela a colocam como um símbolo de tudo o que Brás Cubas poderia ter sido: um homem com poder político, prestígio e uma vida de sucesso. Analisando como Brás constrói essa imagem inicial, já depois de morto, percebemos que Virgília não é apenas um interesse amoroso, mas o verdadeiro gatilho para todas as suas lembranças.
O Gatilho da Memória: Virgília no Leito de Morte (Capítulos 6 & 9)
O romance começa de um jeito bem diferente, com a morte do narrador, e Virgília é uma das poucas pessoas que não são da família a estar presente nesse momento. A chegada dela é o que dispara as memórias de Brás e, logo em seguida, seu delírio, que abre a porta para o passado. No Capítulo 6, "Chimène, qui l'eut dit?—Rodrigue, qui l'eut cru?", Brás descreve a chegada dela, já mostrando sua importância: "O que por agora importa saber é que Virgília—chamava-se Virgília—entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os annos, e veiu até o meu leito".
Essa visita não é um mero acaso; ela é a peça-chave que sustenta toda a narrativa. O livro é um livro de memórias, e toda lembrança precisa de um ponto de partida. Brás Cubas deixa isso claro no Capítulo 9, "Transição", quando explica por que sua história não segue uma ordem cronológica: "E vejam agora com que destreza... faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delirio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão peccado da juventude...". Com essa frase, ele coloca Virgília não apenas como sua grande paixão, mas como a chave que liga sua consciência de narrador. A importância dela vai além do romance e da traição, tornando-se a base da estrutura do livro. Sem a aparição dela no Capítulo 6, a história, do jeito que Brás a conta, simplesmente não existiria. Ela é, portanto, a causa principal da existência do livro.
Uma Coincidência do Destino? O Nome "Virgília" (Capítulo 26)
Em um momento de desânimo após a morte da mãe, Brás está rabiscando sem pensar o nome do poeta romano Virgílio. Seu pai vê o papel e entende aquilo como um sinal do destino, já que a noiva que ele arranjou para Brás se chama Virgília. O texto do Capítulo 26, "O autor hesita", mostra esse momento de revelação forçada: "...ia a escrever virumque, -e sai-me Virgílio, então continuei... Meu pai... lançou os olhos ao papel... -Virgílio! exclamou. Es tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília".
Essa conexão entre "Virgílio" e "Virgília" faz o possível casamento parecer algo grandioso, quase um épico predestinado. Virgílio é o autor da Eneida, um poema sobre dever, destino e a fundação de um império. Ao ligar o nome da noiva ao do poeta, o pai de Brás (e o próprio Machado de Assis) eleva o casamento arranjado a algo muito maior que um simples acordo social. Essa preparação, no entanto, é pura ironia, pois prepara o leitor para o fracasso que vem a seguir. O relacionamento não vira um épico; ele acaba antes de começar, transforma-se em um caso secreto e, no fim, se desfaz. A "coincidência" é um truque clássico de Machado: ele usa uma referência culta para criar uma expectativa que depois é totalmente desmontada, mostrando o abismo entre as ambições de Brás e sua realidade.
A Virgília Jovem, Segundo Brás (Capítulo 27)
No capítulo "Virgília?", Brás faz um retrato detalhado da personagem aos dezesseis anos, tanto físico quanto de personalidade, e faz questão de dizer que sua memória de morto é precisa. Ele a descreve como "...talvez a mais atrevida creatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa... Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno... era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção...". Em um estilo que é a sua marca, ele fala diretamente com ela no texto, como se ela estivesse lendo suas memórias, o que reforça a intimidade e a suposta verdade do que ele conta: "tu que me lês, amada Virgília, não sentes a diferença da linguagem de hoje para a que usei?".
Esse retrato é menos uma descrição real e mais uma prova montada por um narrador em quem não se pode confiar. Brás define Virgília com características ("atrevida", "voluntariosa", "ignorante") que, ao mesmo tempo, explicam por que ele se sentiu atraído e já dão uma desculpa para a futura "traição" dela, quando ela prefere o mais ambicioso Lobo Neves. O retrato é uma forma de se autoabsolver disfarçada de uma boa lembrança. Como um "defunto autor" que escreve para justificar o "saldo negativo" de sua vida, Brás tem todo o interesse em apresentar os fatos de um jeito que diminua seus próprios fracassos. Ao descrever a jovem Virgília como ambiciosa e determinada, ele sugere que a escolha dela foi consequência do jeito dela, e não da falta de atitude dele. Sua afirmação de que é sincero ("a morte não me fez rabugento nem injusto") é uma tática para ganhar a confiança do leitor antes de contar uma versão parcial da história. Este capítulo é uma aula sobre narração não confiável: não vemos Virgília, mas a versão que Brás construiu dela, uma versão que serve para massagear seu ego de defunto.
Parte II: O Caso Secreto: Auge e Confusão do Romance
Esta parte da análise foca no relacionamento adúltero, o coração da história de Virgília no livro. Aqui, ela deixa de ser um plano para o futuro e se torna um segredo no presente. O foco é na complexidade psicológica do caso, em como eles mantinham o segredo e nos sentimentos confusos de Brás, que iam do sentimento de vitória ao ciúme e, por fim, ao tédio.
A Chama Reacende: "É Minha!" (Capítulos 50 & 51)
No Capítulo 50, "Virgília casada", Brás fica sabendo que Virgília se casou com Lobo Neves. Sua reação é uma mistura de arrependimento com um desejo que renasce. O caso dos dois começa pouco depois, e o ponto alto é a declaração vitoriosa que dá nome ao Capítulo 51: "É minha!". Para Brás, o caso não é só paixão; é uma conquista. Virgília, que ele tinha "perdido" para um rival, se torna um prêmio a ser reconquistado.
A lógica por trás disso está na derrota anterior de Brás. Virgília foi apresentada a ele como parte de um pacote de sucesso: carreira política e casamento estratégico. Lobo Neves consegue as duas coisas, o que é uma derrota dupla para Brás. O caso, então, vira um jeito de Brás "vencer" essa competição de forma retroativa. Ele pode não ter a carreira, mas tem a esposa do vencedor. A linguagem possessiva ("É minha!") diz tudo. Ela mostra que o relacionamento não é uma união de iguais, mas uma aquisição, um jeito de reequilibrar seu ego ferido. O amor está totalmente ligado à sua rivalidade com Lobo Neves e à sua necessidade de se sentir importante.
Construindo um Mundo Secreto (Capítulos 55-68)
Estes capítulos contam os detalhes práticos do adultério: os encontros secretos, o aluguel da casinha na Gamboa e a presença de Dona Plácida para servir de álibi e proteger o segredo. Brás reflete sobre esse mundo escondido, um pequeno universo que eles criaram só para eles. A construção cuidadosa do segredo permite que Brás tenha uma vida paralela, uma "contra-vida" que compensa os fracassos de sua vida pública.
A vida pública de Brás é cheia de inércia e frustração. Ele não vira ministro, não se casa com Virgília e não consegue criar seu famoso "emplasto". O caso de amor, por outro lado, é um campo de muita ação: exige planejamento, execução e gerenciamento de riscos. A casa secreta vira um símbolo desse sucesso. É um mundo que ele controla, diferente do mundo público, onde ele é apenas um coadjuvante. Por isso, o caso o atrai não só pela paixão, mas por ser um projeto de vida que deu certo, mesmo que seja moralmente questionável.
Paixão, Ciúme e Egoísmo (Capítulos 69-95)
Este longo trecho do livro explora o centro emocional do caso. As passagens falam do ciúme intenso que Brás sente de Lobo Neves, dos momentos de felicidade com Virgília, das preocupações dela e da ameaça constante de serem descobertos, como no episódio da carta anônima. Ao longo da narração, Brás mostra que seu foco é menos em Virgília como pessoa e mais no que ela representa para ele e em como ela o faz se sentir. Seu ciúme tem a ver com seu status em relação a Lobo Neves; sua felicidade é um reflexo da satisfação de seu próprio ego.
Virgília se torna um espelho onde Brás admira suas próprias emoções, revelando que ele é o centro de seu próprio universo. Quando Brás descreve a beleza ou as atitudes de Virgília, o assunto final é quase sempre a reação dele: a sua vitória, o seu ciúme, o seu prazer. Ele raramente pensa sobre o que ela está sentindo, a não ser que seja sobre os sentimentos dela por ele ou o medo de serem descobertos. As motivações dela são simplificadas para se encaixarem na narrativa da grande paixão dele. Esse egocentrismo é uma marca de seu personagem no livro todo. Assim, o grande caso de amor, quando olhamos de perto as palavras do próprio Brás, se revela como mais uma faceta de sua obsessão por si mesmo. Ele ama a sensação de ser amado por Virgília mais do que ama a própria Virgília.
Parte III: O Fim da Linha: Política, Tempo e o Desgaste do Amor
Esta seção acompanha o fim gradual do caso de amor. A análise se concentra nos trechos que mostram uma mudança na relação, causada por pressões de fora, como as ambições políticas de Lobo Neves, a simples passagem do tempo e o esfriamento da paixão. A forma como Brás narra esse período é fundamental para entender sua filosofia de que tudo na vida é uma desilusão.
As Primeiras Rachaduras (Capítulos 96-116)
Este período cobre o momento em que Lobo Neves é indicado para ser presidente de uma província, o que obrigaria Virgília a sair do Rio de Janeiro. As conversas dos amantes, registradas por Brás, ficam tensas. O plano de fugirem juntos ("Fujamos!") é sugerido, mas logo descartado. A paixão dá lugar ao cálculo e ao cansaço. O declínio do caso mostra a crítica de Machado aos clichês românticos. A "grande paixão" não consegue resistir às pressões práticas da ambição social, do dinheiro e da reputação.
O ideal romântico diria que os amantes deveriam sacrificar tudo para ficar juntos. No entanto, Brás e Virgília, embora pensem na possibilidade, não têm coragem de ir em frente. A hesitação de Virgília está ligada à carreira do marido e ao status que isso lhe dá. A hesitação de Brás está ligada à sua aversão a qualquer tipo de problema real. O fracasso da fuga não é uma tragédia, mas uma escolha prática. Isso mostra que o amor deles, embora forte, sempre esteve limitado pelos valores da elite em que viviam. Era um luxo, não uma necessidade.
O Último Encontro (Capítulo 117)
Este capítulo detalha o último encontro importante deles como amantes antes de ela partir com Lobo Neves. O tom, narrado por Brás, é de uma tristeza conformada, sem grande drama. O fim do caso não é apresentado como uma tragédia, mas como um acerto de contas silencioso. É a maior perda na coluna do "negativo" no balanço de sua vida.
O resultado final da vida de Brás, como ele mesmo conclui, é que ele não teve um saldo positivo. O caso com Virgília foi seu maior investimento emocional. O fim dele representa sua maior perda. Ao narrar o fim com tanta calma, ele o trata como uma lei inevitável da natureza, como um negócio que chegou ao fim e precisa ser fechado. Isso reforça sua visão cínica do mundo e apresenta seu fracasso pessoal como uma verdade universal, usando mais uma vez sua história para ilustrar sua filosofia.
Parte IV: Virgília na Memória: A Versão Final da História
Esta última parte da análise resume o papel de Virgília no romance. Voltando à ideia de Brás escrevendo do túmulo, analisamos como a memória distorce, remodela e, no fim, define a personagem. O foco é em como a Virgília mais velha, da cena do leito de morte, é ao mesmo tempo a mesma e completamente diferente da jovem amante que Brás passa o livro inteiro tentando reviver.
As Duas Versões de Virgília: A Realidade e a Lembrança (Capítulos 6 & 132)
É importante comparar a descrição da Virgília mais velha no Capítulo 6 ("Tinha então 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina") com um encontro posterior no Capítulo 132, onde Brás a vê depois de muitos anos e pensa sobre as mudanças que o tempo causou: "Vi Virgília, ao longe... Os olhos dela, aqueles olhos de ressaca... não eram os mesmos...". A narrativa de Brás é uma luta constante entre a realidade decepcionante do presente (uma Virgília envelhecida, sua própria morte) e a memória idealizada do passado.
Ele revive a Virgília jovem e apaixonada do caso de amor porque a "imponente ruina" em seu leito de morte é um lembrete doloroso do tempo, da decadência e de sua própria mortalidade. A memória é uma tentativa de fazer a lembrança parecer mais real que a realidade. A primeira imagem que temos de Virgília é de decadência. A maior parte do livro é dedicada a apagar essa imagem e trocá-la por uma de juventude, beleza e paixão. Isso é um ato de desafio contra o tempo. Brás, por estar morto, está fora do tempo e pode manipulá-lo em sua história. Assim, toda a história do caso pode ser lida como a tentativa de Brás de derrotar a "ruína" do Capítulo 6, de preservar Virgília (e a si mesmo) em um passado eterno e perfeito.
Virgília: O Verdadeiro "Remédio" de Brás Cubas
O grande projeto da vida de Brás foi o "Emplasto Brás Cubas", um remédio inútil para a tristeza, que deveria lhe trazer fama. Seu outro grande projeto de vida foi o caso com Virgília. Embora ele não tenha conseguido criar seu remédio físico, ao escrever suas memórias, ele cria um remédio narrativo. A história de seu amor por Virgília é o ingrediente principal desse novo "remédio". É a grande história que ele usa para se distrair da tristeza e do fracasso de sua vida real.
O objetivo do emplasto era alcançar a glória e aliviar a melancolia. A vida de Brás não lhe deu nenhuma das duas coisas. O ato de escrever suas memórias permite que ele dê um novo significado à sua vida, colocando um grande e trágico romance no centro de tudo. Essa narrativa dá à sua vida um sentido e um drama que, de outra forma, ela não teria. A história de Virgília se torna sua prova de que teve uma vida que valeu a pena. Assim, a própria memória, com Virgília no coração, se torna o verdadeiro "Emplasto Brás Cubas" — uma invenção literária que acalma o ego póstumo do autor e garante sua "fama" com o leitor. Virgília, como figura lembrada e narrada, é a cura para a falta de sentido da vida que ele viveu.